Fundo investe R$ 100 milhões em negócios criados em periferias


Em fevereiro de 2020, às vésperas da pandemia, o Nossa! Cozinhas, negócio voltado ao delivery em que cozinheiras autônomas que moram em comunidades pobres do Recife trabalham como empreendedoras associadas, garantia a sobrevivência de seus fundadores, Hamilton Silva e Isabela Ribeiro. A dupla sonhava com a expansão do negócio, mas, depois de ter passado por várias aceleradoras, não acreditava em um crescimento exponencial no curto prazo. No entanto, dois anos mais tarde, eles operam cinco cozinhas, que atendem os serviços de delivery de 62 restaurantes da capital pernambucana. A receita saltou de R$ 240 mil para os R$ 4 milhões previstos para 2022.
O salto ocorreu após o projeto receber aportes de Andre Szjaman, cofundador da gravadora Trama e sócio da VR Strategy, que somaram R$ 1 milhão. Os investimentos serviram como laboratório para a criação de um fundo de investimentos voltado para empresas de periferias brasileiras, que será lançado em 60 dias. O Fundo Pyaar terá inicialmente R$ 100 milhões – desse valor, R$ 50 milhões já estão captados.
O encontro entre Szjaman e Hamilton se deu em evento organizado pelo Insper que dava oportunidade de empreendedores periféricos mostrarem projetos a empresários e investidores.
“Cada um tinha 10 minutos para falar, mas todo mundo se estendeu e, no final, sobraram três minutos para o Hamilton. Ele fez a apresentação, em um tipo meio rap e meio sedutor, e eu falei ‘caramba, quem é esse cara?’”, lembra o investidor. “Voltei para casa, liguei para o Eduardo (Mufarej) e falei que tinha achado um cara interessante para a gente conhecer”, diz o investidor sobre a conversa com o futuro sócio no fundo.
A ideia do encontro no Insper era sensibilizar investidores para a realidade do empreendedorismo em regiões periféricas. Szjaman, que é da família fundadora do grupo brasileiro de benefícios VR – vendido à Sodexo por R$ 1 bilhão em 2007 –, diz ter entendido bem esse recado.
Além do dinheiro, o cofundador do Nossa! Cozinhas conta que Szjaman se tornou efetivamente um sócio da companhia, participando de reuniões todas as segundas-feiras. Depois de lidar com outros interessados em seu negócio, Hamilton e Isabela dizem que nunca estabeleceram antes uma relação do tipo. “Esse é o grande diferencial. Agora, não há um intermediário, ele mesmo (Szjaman) está lá olhando para o negócio, falando ‘aqui que pode ser um caminho’, ocupando mais do que o espaço de financiador”, define Hamilton.
Depois de angariar 62 restaurantes parceiros em suas cozinhas de Recife, o Nossa! Cozinhas tem a intenção de expandir o negócio para Fortaleza – projeto que, segundo Hamilton, será iniciado ainda neste segundo semestre. Até o fim de 2023, o objetivo é chegar a oito cozinhas na capital cearense. A expectativa é de que, após esse passo, o negócio tenha um acréscimo de R$ 4,5 milhões ao seu faturamento anual.
O Fundo Pyaar está em fase de estruturação pela gestora Macam Asset, de Felipe Rodrigues, sócio mais recente da operação – que tem também José Papa Neto (publicitário e fundador do canal de cultura afrourbana Trace Brasil) e Eduardo Mufarej (da GK Ventures).
O Pyaar já planeja seus próximos investimentos. O próximo aporte, conta Rodrigues, será em um negócio já bem estruturado no setor imobiliário e que deve ser revelado após o aval da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão que regula esse tipo de fundo.
O Pyaar se soma a outras iniciativas voltadas ao empreendedorismo surgido em periferias. Para Sérgio Lazzarini, coordenador do Insper Metricis – núcleo de estudos em investimentos e medição de impacto socioambiental –, a movimentação é bem-vinda, mas não vai gerar transformação significativa focando apenas em empresas. Segundo ele, para “mudar realidades”, o empresariado brasileiro, ao olhar para regiões periféricas, precisa incluir um envolvimento mais profundo com esses territórios.
“Uma grande contribuição de iniciativas como essas seria olhar para os problemas estruturais das comunidades”, diz o especialista. “São iniciativas importantes, mas só colocar dinheiro e levar conhecimento do mercado de capitais a esses lugares não é suficiente.”
O aporte no Nossa! Cozinhas veio já na pandemia, quando, mais do que parte do negócio de restaurantes, o delivery passou a ser a principal ferramenta. Mas, pensado por pessoas que nasceram em comunidades pobres – Hamilton em São Gonçalo (RJ) e Isabela em Casa Amarela (Recife) –, incomodava a dificuldade de entregar justamente para as pessoas das comunidades em que o Nossa! Cozinhas está – Casa Amarela, Nova Descoberta, Santo Amaro e Ipsep, todas em Recife. Apps como o iFood costumam não aceitar esses pedidos.
Assim, em julho de 2020, eles criaram o Silva, serviço de delivery que tem como principal negócio atender à demanda de favelas. A operação vem crescendo, ganhou independência e virou uma nova aposta de Szjaman e, agora, do fundo Pyaar.

Estadão Conteúdo
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