Por Thiago Bethônico | Folhapress
Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil
Um dos principais especialistas no fenômeno que ficou conhecido como ascensão da classe C, o economista Marcelo Neri diz que a classe média de hoje tem um novo perfil em relação aos governos petistas: ela é mais sofrida.
Segundo o diretor da FGV Social, o quadro socioeconômico que alavancou esse público nos anos 2000 era composto por três fatores principais: avanço da economia; crescimento da renda acima do PIB (Produto Interno Bruto) e redução contínua da desigualdade.
No entanto, todos esses efeitos duraram até 2014 e foram revertidos. "A desigualdade aumentou, o crescimento caiu e invertemos essa equação", diz Neri, em entrevista à Folha de S.Paulo.
Na visão dele, o conceito de classe média atualmente está mais próximo da classe média tradicional, que ascendeu no início da década de 1970. Nesse período, que ficou conhecido como milagre econômico, o Brasil teve altas taxas de crescimento, mas com uma escalada da desigualdade.
"Talvez tenhamos perdido aquele elemento de nova classe média, dos primeiros [a acessar certos itens de consumo]. Eu diria que hoje é uma tendência mais de conservadorismo, uma apologia da época do milagre econômico", afirma.
Para Neri, outras mudanças de perfil também são perceptíveis. A carteira de trabalho, que ele considera o grande símbolo da classe média dos governos Lula, já não se encaixa mais no contexto de hoje.
"Acho que esse é um tempo que já foi. Estamos mais numa época de empreendedorismo, uberização, não é mais a carteira assinada."
PERGUNTA - Existe hoje uma nova classe média no Brasil, um novo perfil?
MARCELO NERI - Temos falado muito de polarização, muitas vezes no sentido político, mas polarização é o oposto de classe média. Quer dizer, os extremos estão crescendo em detrimento do meio, que é por definição onde está a classe média, seja a nova classe média —mais ligada a uma classe C— ou uma classe média tradicional.
Mas, obviamente, existe esse grupo. Houve um episódio em 2020, auge do auxílio emergencial, em que vimos pessoas das classes A e B caindo, por conta do isolamento social, e pessoas das classes D e E subindo. Mas foi algo que durou pouco.
Talvez vivamos um processo parecido com essa concessão do auxílio de R$ 600, mas nada que seja muito permanente. Essa é a preocupação.
O que surpreendeu daquele movimento da nova classe média [dos governos petistas] é que persistiu durante um tempo. Sempre teve muita instabilidade, mas durou do fim da recessão de 2003 até 2014. Foi um processo de crescimento contínuo e baseado em três partes.
Uma parte é o próprio crescimento da economia, crescimento do PIB, na época do boom de commodities. Outro foi um crescimento da renda das pessoas acima do crescimento do PIB. Além disso, uma redução contínua da desigualdade.
Mas todos os efeitos duraram até 2014 e foram revertidos. A desigualdade aumentou, o crescimento caiu e invertemos essa equação. A renda das pessoas passou a crescer menos que o PIB. Então, existe essa classe média mas, nos últimos anos, ela é sofrida.
P.- O que muda no perfil de consumo dessa classe média mais sofrida?
MN- Existem dois tipos de classe média. Uma é a classe média americana, o padrão europeu, que figura no imaginário das pessoas mundo afora. Aquela que tinha dois carros, dois cachorros e dois filhos. Mas esse é um padrão de países ricos.
Há também a chamada classe C, que é mais associada à nova classe média, que é uma classe média brasileira e num certo sentido global, porque a distribuição de renda brasileira —a partir da qual nós calculamos a classe média— é surpreendentemente próxima da média global.
Agora, de 2015 em diante, o Brasil teve um desempenho bem pior. Certamente não se comportou como um país emergente, então perdemos terreno.
Houve esse achatamento, em função da grande recessão. O aumento da desigualdade na renda do trabalho foi contínuo por 17 trimestres consecutivos —um recorde de permanência.
Hoje em dia, quando se fala em classe média, talvez estejamos falando mais de uma classe média tradicional e menos dessa classe C.
P.- A classe C hoje é mais enxuta do que era nos anos 2000 e 2010?
MN- Sim. Isso é um ponto importante. Não é que desfizemos totalmente os ganhos que existiram. Basicamente vivemos uma década perdida. Se olharmos, por exemplo, a desigualdade de renda do trabalho —que é motor importante de mudanças, por ser mais estrutural— nós estamos na mesma média de renda que tínhamos em 2012.
Tem se falado agora em redução de desemprego, aumento de carteiras assinadas —que antigamente era o símbolo dessa nova classe média. Isso de fato está acontecendo e são notícias boas.
Mas, quando olhamos a média de renda per capita do trabalho, que é uma espécie de resumo da ópera trabalhista, nós não só estamos num nível tão ruim quanto 2012, como não estamos tendo um bom desempenho nos últimos trimestres.
O efeito da inflação tem sido mais forte. As pessoas têm perdido rendimento, tem havido uma certa precarização ao mesmo tempo em que há esse ganho de ocupação.
P.- O senhor falou sobre uma classe B que caiu para classe C durante a pandemia. Até onde isso é relevante na comparação com aquela nova classe média dos anos 2000?
MN- Aquilo foi um processo contínuo. [Naquele período] A classe média tradicional, passando pela B e chegando na A, vinha crescendo. Talvez tenha sido a que, percentualmente, cresceu mais.
Apesar da desigualdade ter diminuído, foi um período de tendências contínuas, mudanças sobre mudanças. Foi um ciclo virtuoso.
No processo de queda da classe B, temos segmentos mais ligados ao setor externo, como ramo de commodities. Por exemplo, nós fizemos estudo sobre alta renda, e se destacou o município de Nova Lima —na periferia de Belo Horizonte— que é a capital da mineração. Onde há a maior concentração entre os municípios dessa classe alta.
Então é importante distinguir. Essa classe alta perdeu, muito por causa do isolamento social. Também não teve auxílio emergencial, que ajudou as classes mais baixas.
Esse episódio acho que é interessante de recuperar, pois podemos estar vivendo algo semelhante hoje, com esse auxílio de R$ 600.
Olhando as estimativas de pobreza, logo no começo da pandemia havia 64,5 milhões de pobres. No auge do auxílio caiu para 42 milhões. Esses 23 milhões de pessoas subiram. No entanto, seis meses depois, em janeiro de 2021, voltamos a ter 67 milhões de pobres. Foi uma bate-volta.
No fundo, a classe C cresceu por duas forças na pandemia. De um lado, a perda do topo, porque a classe alta também perdeu. E por um impulso na base, em função do auxílio emergencial.
P.- O senhor diria que a parcela de pessoas que caíram da classe B para a classe C é hoje maior do que durante os governos do PT?
MN- Foi algo muito concentrado. Isso também depende do lugar. O crescimento da nova classe média foi muito forte no Nordeste, onde havia uma velha pobreza que virou nova classe média em alguma medida.
Pernambucano foi onde a pobreza mais aumentou nos últimos dois anos. Cresceu 8,14 pontos percentuais. Se olharmos no governo Lula, foram 17 pontos percentuais de queda de pobreza. De pessoas que subiram. Se considerarmos 2014, em vez de 2010, a queda foi de 25 pontos percentuais.
Nos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, a pobreza caiu 8 pontos percentuais —que é mais ou menos o que perdemos agora na pandemia.
O que fez toda a diferença foi o fato de ser um período longo, de crescimento sobre crescimento. Os três fatores macro por trás disso são: crescimento do PIB, crescimento da renda acima do PIB e, no topo disso, uma redução de desigualdade contínua, que durou 13, 14 anos seguidos. Vinha antes do governo Lula e continuou até 2014.
Em geral, na maioria dos países emergentes, o crescimento era positivo, mas a desigualdade subia. No caso brasileiro a desigualdade caiu, como caiu na América Latina. Só que a renda média das pessoas aqui no Brasil subiu acima do PIB. Isso levou a um crescimento do potencial de consumo.
A carteira de trabalho era o grande símbolo dessa nova classe média, e acho que esse é um tempo que já foi. Estamos mais numa época de empreendedorismo, uberização, não é mais a carteira assinada.
Outro ponto importante da nova classe média é a existência dos primeiros da família que conseguiram acessar certos itens de consumo —como colocar o filho numa escola privada ou contratar um plano de saúde privado.
Hoje, mesmo que haja uma volta do crescimento, não teremos os primeiros [consumidores]. Os primeiros não esquecem. Tem um efeito mais marcante na trajetória, que depois fica refém desses picos de consumo do passado.
P.- Quem come carne uma vez por semana hoje vai estar mais satisfeito se não comia carne antes, do que se ele comia carne três vezes por semana.
MN- Existe hoje uma parcela da classe C que não viveu uma escassez. O que isso muda?
Não ter vivido [a escassez], como é o caso das novas gerações, ou já ter experimentado no passado, faz com que a pessoa se ressinta mais. Os sociólogos falam que um pico prévio de consumo é um motivo de infelicidade presente. Assim como o efeito da "grama do vizinho ser mais verde".
Talvez o maior concorrente do Bolsonaro hoje, para fazer o Auxílio Brasil de R$ 600, seja o próprio Bolsonaro em 2020, quando ele deu o Auxílio Emergencial. Fica prisioneiro dessa situação.
No auge do programa havia 67 milhões de beneficiários. Um terço da população recebia. Na passagem, algumas pessoas perderam.
P.- O senhor falou de alguns símbolos da classe média daquele período, como a carteira assinada. Qual é o símbolo da atual classe média?
MN- Talvez tenhamos perdido aquele elemento de nova classe média, dos primeiros [a acessar certos itens de consumo]. Eu diria que hoje é uma tendência mais de conservadorismo, uma apologia da época do Milagre Econômico.
A nova classe média surgiu nesse período de boom de commodities, com redução de desigualdade, crescimento de emprego formal etc. A classe média tradicional, que são as classes A e B, em boa medida surgiu na época do Milagre, quando [a economia] crescia, mas com aumento da desigualdade.
Talvez o nosso conceito de classe média hoje seja mais de uma classe média tradicional, dessa que ascendeu lá atrás, e menos de uma classe média pioneira, que consumiu pela primeira vez certos bens e serviços.
E muitos desses bens e serviços são importantes. Um plano de previdência, um plano de saúde, escola privada para os filhos... São elementos que permitem a ascensão social. Não era uma busca do consumo, mas uma obtenção de capacidade de geração de renda.
RAIO-X
Marcelo Neri, 59
Economista, Marcelo Neri é diretor do FGV Social e fundador do Centro de Políticas Sociais da FGV. Foi ministro-chefe da SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos), da Presidência da República, e presidente do Ipea. É doutor em economia pela Universidade de Princeton (EUA), mestre e bacharel em economia pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Também é professor no doutorado, no mestrado e na graduação da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças), da FGV, no Rio de Janeiro.